Da relação hierárquica entre superior e subalterno: O paradigma controverso da ordem/instrução ilegal do superior
Sumário: 1. Conteúdo e papel do dever de obediência; 2. Do ponto de vista internacional: clássicos da doutrina administrativa; 3. Hierarquia ou legalidade? A doutrina portuguesa; 4. Solução legal consagrada.
1. Conteúdo
e papel do dever de obediência
Em primeiro lugar, e
devida à relação de inseparabilidade entre ambas as ideias, cabe uma breve
abordagem ao conceito de hierarquia. Tomando a lição de OTTO MAYER por modelo,
a ordem hierárquica tem por objeto, segundo define, uma “obrigação de servir”
que implica um vínculo de sujeição (sujétion spéciale), do subalterno ao
seu superior. E é através do ato da instrução que este vínculo produz efeitos,
determinando o superior por meio desta, e de um modo obrigatório, a conduta a
cumprir pelo subalterno. Diz-se que existe uma ordem hierárquica precisamente em
consequência da existência desta sujeição na sua base[1], daí não se afigurar
possível falar de obediência sem mencionar o conceito de hierarquia –
implicam-se mutuamente.
Em razão do modelo hierárquico
de organização administrativa adotado no nosso ordenamento e, consequentemente,
do vínculo jurídico que, como vimos, se constitui entre superior e subalterno,
nasce o dever de obediência (um dos múltiplos deveres a que o subalterno está
vinculado), situação jurídica passiva contraposta ao poder de direção. A
estruturação hierárquica encontra o seu sentido não apenas na eficiência (cada
qual tem a sua função na hierarquia, agilizando a prossecução do interesse
público a que a administração se encontra adstringida – art. 266.º, nº1 CRP),
mas também na conformidade com o princípio da instrumentalidade, já que se não
houvesse dever de obediência e os subalternos se considerassem desvinculados
das ordens e instruções de seus superiores, haveria uma aquisição de independência
por parte da administração (defraudando o tal princípio) que tornaria, por sua
vez, incongruente a existência de uma responsabilidade política do Governo,
pelos atos dessa mesma, perante a Assembleia da República[2]. Assim, inegável será a
importância da existência de um dever desta natureza, por forma a exercer-se uma manutenção da
coerência das funções políticas do governo, bem como para preservação de uma
efetiva hierarquia.
Contudo, a Constituição
no art. 271º, nº2, conjugada com a Lei nº35/2014, de
20 de Junho (revogando o antigo Estatuto Disciplinar), nomeadamente, o seu art.
73.º, nº 8, providencia uma noção mais precisa daquilo em que consiste o dever
de obediência, constando da sua previsão três pressupostos chave: que a ordem
em causa provenha de legítimo superior hierárquico, que tenha
sido dada em objeto de serviço e em respeito pela
forma legal. Com estas considerações em mente, e porque não se pode
construi-lo como absoluto, não existe qualquer dever de obediência quando: a
ordem advenha de entidade não pertencente à administração ou quando, sendo
parte da administração, esta tenha sido dada por quem não se enquadre na cadeia
em que se insere o subalterno; quando a ordem tenha por conteúdo assunto da
vida particular do superior ou do subalterno; ou ainda quando seja verbal em
casos onde exista uma exigência legal de forma escrita. Em situações deste
género existe a designada ilegalidade extrínseca[3], não havendo qualquer
obrigação de acatamento por parte do subalterno. Mas e se, cumpridos todos os
requisitos acima nomeados (não havendo, portanto, ilegalidade extrínseca mas
sim intrínseca), o subalterno receber uma ordem que culmine em ato ilegal ou ilícito?
O que sucede ao dever de obediência?
2. Do
ponto de vista internacional: clássicos da doutrina administrativa
A questão pendente é a de
perceber se o dever de obediência prevalece em caso de ilegalidade intrínseca,
ou seja, quando se preencham todos os pressupostos para que ele exista, mas a
ordem recebida pelo subalterno inculque a prática de atos ilegais.
No sentido da prevalência
do dever de obediência, argumenta LABAND que embora atos
expressamente interditos por lei não sejam em caso algum objeto de serviço, não
se verificando um dos pressupostos do dever de obediência, e, por conseguinte,
não tendo o subalterno de acatar tal ordem – isto não se confunde com a
desobediência do subalterno, de ordens conformes ao direito mas entendidas por
ele mesmo como contrárias à lei. Embora este tenha o direito de julgar a
ordem recebida quanto a alguns aspetos (como se viu, o dever de obediência não
é absoluto), não lhe caberá averiguar se a autoridade que lhe é superior aplica
e interpreta bem a lei. Isto seria uma total desvirtuação do sistema de
organização hierárquico (baseado na subordinação dos inferiores aos superiores)[4].
Ainda neste sentido
outros autores como NÉZARD e OTTO MAYER, este último, explicitando que tal construção
advém de uma doutrina moderna de direito público que tende a exagerar
princípios. Esta doutrina acreditaria que ao atribuir ao subalterno a
possibilidade de examinar a regularidade das ordens que recebe do seu superior
(averiguando se estarão em conformidade com o direito, e caso considere não
estarem: desobedecer) haveria uma maior garantia da autoridade absoluta da lei.
Ora, no seu entendimento, o poder de dar ordens do superior (poder de direção) esvazia-se
de qualquer valor a partir do momento em que, negando a força própria da ordem
hierárquica, o subalterno desobedece à ordem que recebe por julgá-la ilegal[5].
Designada a corrente
hierárquica, estes autores, entre outros, sustentam, portanto, que não cabe
ao funcionário apreciar a legalidade das ordens que recebe. Fazendo-o,
sobrepõe-se ao critério de seus superiores, incorrendo em subversão da ordem
hierárquica[6].
Pronunciando-se, em
sentido oposto, pela prevalência da lei sobre o dever de obediência, grandes
nomes como HAURIOU, JÈZE, DUGUIT e na doutrina italiana SANTI ROMANO, EM.
ORLANDO, entre outros. Na sua obra, DUGUIT aborda a questão contrastando com as
anteriores construções dogmáticas, e entendendo que havendo a emissão de uma
ordem pelo superior ao subalterno, não nasce automaticamente na esfera do
subalterno a obrigação jurídica de se conformar com a mesma. Isto seria deixar
à administração caminho aberto para incumprir a lei. Ora, num Estado de Direito, admitir um governo que atue fora da lei não é concebível, não devendo este, portanto, ser
colocado numa posição onde tal lhe seria concedido. Explica ainda que este
entendimento advém da visão, a seu ver retrógrada, de que para um Governo ser
forte deve poder exigir uma obediência passiva de todos os seus funcionários –
conclui, desconsiderando tal tese, que ao subordinado é indubitavelmente reconhecida a
possibilidade de desobediência a ordens ilegais do seu superior[7], acrescentando que a solução
legalista é a ideal para garantir uma maior proteção dos funcionários
contra a ação arbitrária de seus superiores.
3. Hierarquia
ou legalidade? A doutrina portuguesa:
A problemática foi também
acolhida pela nossa doutrina, existindo de um lado, quem defenda a prevalência
do princípio da legalidade da administração – art. 266º, nº2 CRP – pelo que, o
dever de obediência cede perante o mesmo; e por outro lado quem assuma a
prevalência deste dever, em razão do seu papel crucial na atribuição
de fundamento à hierarquia.
Dentre notáveis trabalhos sobre a matéria, destaca-se a obra de MARCELLO CAETANO, que efetua uma nítida organização e abordagem das diversas posições a que já fizemos referência. Segundo a sua classificação, existe, naturalmente, uma separação entre corrente hierárquica e corrente legalista, mas dentro da própria corrente legalista haveria que se separar entre três subcorrentes distintas. Distinguem-se: a opinião restritiva, que defende a possibilidade de desobediência do funcionário, apenas mediante ordem que imponha a prática de um ato criminoso ou imoral[8]; a opinião intermédia, em que é admitida desobediência sempre que a ordem recebida seja nitidamente ilegal, por contrária à letra ou espírito da lei; e a opinião ampliativa, que preconiza a possibilidade de desobediência a toda a ordem ilegal, seja qual for o motivo da ilegalidade – acima de todo o superior está a lei [9].
Segundo o professor é de
se acolher a tese hierárquica, contudo, “temperada nos termos em que está regulada
nas leis portuguesas”[10], reconhecendo que a
solução hierárquica tem os seus inconvenientes, já que deixa a critério do
subalterno o exame da legalidade (ou não) da ordem, o que nem sempre será conveniente,
tendo em conta, designadamente, o facto de tal depender do conhecimento que o
mesmo tem da lei, e se em certos casos ele saberá com certezas identificar uma
ordem ilegal, noutros nem sempre será evidente.
De opinião inversa, o
professor JOÃO TELLO DE MAGALHÃES COLLAÇO pronuncia-se pela solução legalista,
pois em razão da supremacia da lei sobre a hierarquia (princípio da legalidade
da administração – art. 266º, nº2, CRP), o subalterno não deve obedecer a
nenhuma ordem ilegal.
Admitindo que a
problemática é complexa precisamente por não haver uma solução ideal, FREITAS
DO AMARAL concede que ingressando pela via legalista surgem fatores de
indisciplina, e acrescenta que, adotada esta visão, o que sucede é uma
mera escolha entre duas interpretações da lei, neste caso, optando pela
interpretação do subalterno. Contudo, inclina-se para esta tese, sem descurar as
devidas moderações, em respeito pelos princípios de Estado de Direito
democrático (preâmbulo da CRP) e da legalidade. Em acréscimo, aponta o
professor para o facto do dever de obediência ser uma verdadeira exceção ao princípio
da legalidade, legitimada pela própria Constituição (concordando com a
formulação de OTERO “resulta da própria lei ser legal o cumprimento de uma
ordem ilegal”[11]),
devendo-se entender que existe não uma prevalência do princípio da legalidade
sobre a obediência, mas que este último exceciona o primeiro (contrastando com
o preconizado por MAGALHÃES COLLAÇO).
4. Solução
legal consagrada
Abandonam-se as conceções
dogmáticas, as quais, exaustivamente enumeradas ou não, pouco importam perante
a solução legalmente consagrada. Outrora, em pleno regime ditatorial, e em
vigência da Constituição de 1933, reinou o princípio da hierarquia, concretização
literal da ideia “quem manda, manda bem”, típicamente caraterística de regimes
autoritários. Contudo, a Constituição de 1976 assim não entende, naturalmente,
dada a sua natureza democrática.
Adota-se, um “sistema
legalista mitigado”[12], concretizado no art.
73º, nº 8 da Lei nº35/2014, bem como, no art. 271º, nº2 e 3 da CRP, devendo o
dever de obediência, como vimos, respeitar os devidos pressupostos para que se
constitua. Nos restantes casos, este não existe, a não ser que, uma vez
verificados os requisitos, o cumprimento da ordem implique a prática de um
crime – art. 271º, nº3 da CRP e 177º, nº5 da Lei nº35/2014 – ou, quando a
ordem/instrução haja emanado de ato nulo – art. 134º, nº1, CPA. Não se poderão
esquecer, contudo, as ordens que não violando a lei penal (leia-se, não
constituindo nenhum crime), incorram, mesmo assim, em ilegalidade. Nestas
situações, o dever de obediência prevalece, mesmo perante ordem ilegal (o tal
legalismo moderado): resta ao funcionário que a recebe, o ónus de reclamar ou
exigir a sua transmissão/confirmação por escrito ao seu superior antes de a
acatar, explicitando que as considera ilegais, de modo a que possa usufruir de
exclusão de responsabilidade – arts. 271º, nº2 CRP e 177º, nº1 e 2 da Lei
nº35/2014. Ainda nesse artigo do mesmo diploma, diz-nos o nº4 que, quando
perante ordem com menção de cumprimento imediato, a referida reclamação deve
ser efetuada após a execução da ordem/instrução.
A palavra chave parece
ser, portanto, moderação: não se acolhem rígidas soluções hierárquicas (caraterísticas de
regimes totalitários) que impingissem um cego dever de obediência; mas também
não se consagra uma solução irrealisticamente legalista, que condenasse o subalterno
a uma atividade de fiscalização do superior e desse lugar à “anarquização das
cadeias hierárquicas”[13] – opta a lei pelo
equilíbrio, solução que indubitavelmente se considera a mais acertada.
[1]
OTTO MAYER, Le Droit Administratif Allemand, Tome IV, Édition Française (https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k76081p),
1906, p. 67-68
[2] FREITAS DO AMARAL, Curso de
Direito Administrativo, Vol. I, 4ª edição, 2015, p. 231
[3] FREITAS DO AMARAL, Op. Cit., p. 824
[4] PAUL LABAND, Le Droit Public de
L’Empire Allemand, Tome II, Édition Française (https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5758768j/f4.item.texteImage), 1901, p. 149-151
[5] OTTO MAYER, Op. Cit., p.
70-72
[7] LÉON DUGUIT, Traité de Droit
Constitutionnel, Tome III (https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5747875f/f293.item), 1923, p. 285-286
[8] Pode-se questionar, contudo, dada
a indeterminabilidade exata do conceito de moral (variando esta também,
consoante a sociedade em causa), quão restritiva verdadeiramente pode ser esta
opinião; sobre o assunto Marcello Caetano, desconsiderando a moral, entende que
“o essencial da moralidade objetivamente reinante numa sociedade deve estar protegido
pelo direito criminal” (op. cit., p. 734).
[9] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito
Administrativo, Vol. II, Almedina, 2010, p. 733
[10] MARCELLO CAETANO, Op. cit., p. 734
[11] PAULO OTERO, Conceito e Fundamento
da Hierarquia Administrativa, 1992, p. 185
[12] FREITAS DO AMARAL, Op. cit., p. 827-830
[13] MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo II, 2009, p.51
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