Traumas Do Direito Administrativo - Caso Agnés Blanco
I.
Introdução
Este
post, realizado no âmbito da cadeira de Direito Administrativo I, tem como tema
um dos traumas do Direito Administrativo, nomeadamente o relacionado com o caso
de Agnés Blanco.
Segundo
o Professor Vasco Pereira da Silva existiram dois momentos/traumas, que
influenciaram a evolução do Direito Administrativo, e cujas consequências
chegaram até aos dias de hoje.
O
primeiro destes traumas está relacionado com as circunstâncias ligadas ao
surgimento dos tribunais administrativos, e surge pela via jurisprudencial através da atuação do Conselho de Estado Francês. Após a Revolução Francesa de 1789, os
tribunais comuns ficaram proibidos de julgar a Administração Pública: esta
proibição tem como base a implementação de ideais liberais por parte dos revolucionários,
como a exigência da separação de poderes e a garantia dos direitos individuais.
O
segundo trauma surge como direito produzido pelo contencioso privativo da Administração, salvaguardando os interesses próprios da mesma. Este trauma vai estar por detrás da
criação de um Direito Administrativo que visa proteger a Administração, e que
consagra privilégios exorbitantes. No âmbito deste segundo trauma é possível
identificar um acontecimento de extrema importância: o caso Agnés Blanco.
II. Desenvolvimento
Segundo
alguns autores, o caso Agnés Blanco é considerado a “certidão de nascimento do
Direito Administrativo”, ou seja, assinala a data da criação do Direito Administrativo.
A
3 de novembro de 1871, Agnés Blanco, uma menina de 5 anos de idade,
encontrava-se a brincar com um grupo de crianças, num sítio razoavelmente
distante da linha férrea, e considerado seguro para se estar. Contudo, foi
atropelada por um vagão da Companhia Nacional da Manufatura de Tabaco de
Bordéus, uma empresa pública, que teve um acidente. Em virtude deste
atropelamento, foi necessário proceder à amputação de uma das pernas de Agnés
Blanco.
Os
pais da criança, inconformados com a situação, dirigiram-se ao Tribunal de
Bordéus, para intentar uma ação de indemnização pelos prejuízos causados à
filha, que ficara com sequelas do mesmo para o resto da vida.
O
Tribunal na primeira instância afirmou que não era verdadeiramente competente,
visto que estava em causa uma entidade administrativa e não um particular. Se
se tratassem de dois particulares ele poderia decidir, contudo, estava em causa um litígio entre um particular e uma entidade pública,
o que fazia com que não tivesse competência para tal. O Tribunal referiu ainda
que, caso até quisesse tomar uma decisão para o caso, não o poderia fazer,
visto que se verificava a inexistência de normas jurídicas a aplicar, pois o
Código Civil apenas se aplicava às relações entre iguais. Contudo, o particular
e a Administração Pública não eram iguais, e, portanto, não podiam estar
submetidos às mesmas normas.
Os
pais da criança não se conformaram com esta decisão do Tribunal de Bordéus, e
recorreram à jurisdição administrativa. O juiz a nível local era o Presidente
da Câmara (eram os órgãos do poder local que funcionavam como primeira
instância do contencioso administrativo).
Este
juiz tomou a mesma decisão que o Tribunal de Bordéus, ou seja, decidiu aceitar
a decisão do mesmo, sendo que também levantou dúvidas acerca da sua
competência, visto não se tratar de um ato administrativo. Concordou ainda com
a inexistência de norma jurídica aplicável.
Esta
situação, a qual designaríamos hoje por denegação de justiça, ocorre quando
dois tribunais se consideram incompetentes, obrigando à intervenção do Tribunal
de Conflitos. Este Tribunal era composto por quatro membros de cada jurisdição,
e tendo em conta o empate que se verificou aquando da tomada da decisão final,
o presidente do Tribunal de Conflitos decidiu a favor da jurisdição
administrativa.
2. Acórdão Blanco
Em 1873, surge então o Acórdão Blanco, no qual o Tribunal de Conflitos se pronuncia pela competência da jurisdição administrativa, dando assim razão ao Tribunal de Bordéus. Afirma, também, que, visto não existir direito aplicável, é necessário que os tribunais administrativos procedam à criação de um ramo de Direito especial, para que a administração seja submetida a regras diferentes daquelas que regem as situações/relações entre particulares.
3. Evolução do Direito Administrativo
Segundo
o Professor Vasco Pereira da Silva, a evolução do Direito Administrativo pode
ser divida em três grandes fases: a fase do Pecado Original, a fase do Estado
Social e a fase do Estado Pós-Social.
Relativamente
ao período do Pecado Original, este perdurou desde o final da Revolução
Francesa (1789) até aos finais do séc. XIX (período no qual se insere o caso
Agnés Blanco). Os revolucionários franceses reivindicavam o princípio da
separação de poderes.
De
facto, estavam a construí-lo no que respeita às relações entre o poder
legislativo e administrativo e às relações entre o poder judicial e
legislativo. No entanto, não estavam a construir estas relações no que toca à
relação entre a administração e a justiça, sendo esse o “pecado original” do
Contencioso administrativo.
Este período ficou marcado pelo facto de a
administração se julgar a ela própria, pois os tribunais não tinham essa
competência, não havendo legislação aplicável aos litígios administrativos. Ou
seja, verificava-se uma certa contradição por parte dos revolucionários que
repudiavam a administração pública, mas, no entanto, davam-lhe liberdade em
tudo o que não fosse limitado pela lei. Segundo o Professor Vasco Pereira da
Silva, a administração nunca pode ter liberdade, sendo que os seus poderes são
aqueles que a lei estabelece.
III.
Conclusão
É, então, possível afirmar que o caso Agnés
Blanco teve uma importância extrema no processo de criação do Direito
Administrativo.
Inicialmente existia a ideia de que o
particular não tinha direitos perante a Administração, e devido a este trauma
referido esta realidade mudou. Surgiram, então, normas aplicáveis à
responsabilidade pública da Administração, o que fez com que o Direito
Administrativo se impusesse como ramo de Direito.
Este visa proteger a administração consagrando privilégios exorbitantes, entre os quais se encontra o da execução prévia, o de definir as suas próprias realidades, o de definir o Direito aplicado ao particular no caso concreto e o de executar coativamente essas decisões.
Podemos, portanto, afirmar que o Direito Administrativo, em parte, terá, surgido para fazer face a um vazio legal.
IV.
Bibliografia
Do
Amaral, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, volume I, 4ª edição,
Almedina. Coimbra, 2015
Pereira
da Silva, Vasco, O contencioso administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio
sobre as ações no novo processo administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009
Pereira
da Silva, Vasco, Em busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina, 1996
Margarida
Loureiro, nº 62739, Subturma 12
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