O poder de substituição do superior hierárquico representa uma exceção ou um verdadeiro princípio geral da hierarquia administrativa?
Maria Nicolau Freitas Pinto, nº 63041
Índice:
1) Introdução.
2) O conceito de hierarquia administrativa – Análise sucinta.
3)
O poder de substituição do superior
hierárquico. O que é?
4) Diferentes posições doutrinárias sobre a questão em causa.
5) Conclusões.
6) Bibliografia.
1) Introdução
A temática abordada, ou seja, a hierarquia administrativa é crucial e,
poderá mesmo dizer-se, imperativa para se compreender o funcionamento da
Organização Administrativa, sendo que a este conceito se prendem muitos outros
relevantes para compreender o que é importante.
Assim, é necessário começar por analisar os conceitos base integrantes da
temática em questão, perceber como funciona o poder de substituição do superior
hierárquico e as consequências que se sucedem com a sua verificação, e em particular,
abordar, de modo mais específico, a discussão existente relativamente ao
entendimento deste poder como uma exceção ou como um princípio geral da
hierarquia administrativa.
2) O conceito de hierarquia
administrativa – Análise sucinta
A hierarquia é definida pelo
Professor Diogo Freitas do Amaral como sendo “o modelo de organização
administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com
atribuições comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior o
poder de direção e impõe ao subalterno o dever de obediência” [1].
Desta forma, podemos entender a
hierarquia como um modelo de organização administrativa
vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com atribuições comuns,
ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior o poder de direção e
impõe ao subalterno o dever de obediência. Portanto, temos a presença de dois
órgãos com um poder de decisão vertical entre ambos, em que um tem poder de
direção e o outro tem dever de obediência. Assim, verificamos que estamos na
presença de um vínculo entre dois ou mais órgãos administrativos, em que
superior e subalterno atuam para a prossecução de atribuições comuns, sendo que o superior, no exercício da sua faculdade, pode dar ordens ao
subalterno.
A ordem do superior como “conceito jurídico” ou “conceito naturalístico”:
O professor Luiz Costa da Cunha Valente refere, ainda acerca da hierarquia,
a controvérsia relativamente à ordem do superior ser um “conceito jurídico” ou
um “conceito naturalístico”. Esta questão coloca-se na medida em que, caso se
entenda ser um conceito jurídico, aquela ordem só é legitima se for reconhecida
juridicamente, ao passo que, caso se entenda como um conceito naturalístico,
basta apenas uma subordinação factual para podermos falar em ordem.
A hierarquia interna e a externa:
Deste modo, torna-se crucial mencionar que existem duas modalidades de
hierarquia, nomeadamente, a interna e a externa.
A hierarquia interna caracteriza-se pela existência de serviços que guiam
órgãos no exercício da administração, sendo que o que está em causa é o
desempenho regular das tarefas. Portanto, não é relacional, é orgânica e não
tem relevância para os particulares nem para outros sujeitos de direito
público. Esta é igualmente denominada por hierarquia dos agentes, dado
que se debruça sobre a organização interna dos serviços públicos que assenta na
diferenciação entre superiores e subalternos, estando em causa vínculos de
superioridade e subordinação entre agentes administrativos.
Pelo contrário, a hierarquia externa representa uma hierarquia de órgãos,
ou seja, não permite organizar serviços, uma vez que já não está em causa a
divisão do trabalho, mas antes a distribuição de competências entre órgãos da
mesma pessoa coletiva. Importa destacar que há subalternos que são, eles
também, órgãos com competência externa que se projetam na esfera jurídica de
outros sujeitos de Direito. Esta modalidade de hierarquia, ao contrário da exposta
anteriormente, verifica-se entre os diferentes órgãos da Administração.
O poder de direção, o poder de supervisão e o poder disciplinar:
Em razão do tipo de relação hierárquica que se verifique são atribuídos
poderes e deveres. O superior hierárquico vai possuir poderes de direção que
são, principalmente, três: o poder de direção, o poder de supervisão e, por
fim, o poder disciplinar. Não obstante o primeiro ser, de facto, o mais
importante, a verdade é que aquele não seria eficaz se não se verificassem os
restantes.
O poder de direção não necessita de
consagração legal expressa e decorre da própria natureza das funções do
superior hierárquico, sendo que este pode emitir ordens (comandos individuais e
concretos) e instruções (comandos gerais e abstratos).
O poder de supervisão caracteriza-se como a faculdade de revogar, anular ou
suspender atos do subalterno.
Por fim, o poder disciplinar, tal como o nome indica, caracteriza-se por
ser a faculdade de punir o subalterno.
Contudo, existem, para além destes três poderes principais, outros cujo
estudo também pode ser relevante para o entendimento da hierarquia
administrativa, nomeadamente o poder de substituição.
3)
O poder de substituição do superior
hierárquico. O que é?
O poder de substituição do superior hierárquico caracteriza-se por surgir
em situações em que há uma substituição de órgãos administrativos por outros
órgãos, substituição esta que tem um caráter provisório. Contudo, não existe uma definição pacífica na
doutrina.
Se por sua vez, o professor Diogo Freitas
do Amaral define o poder de substituição como sendo a “faculdade de o superior exercer legitimamente
competências conferidas por lei ou delegação de poderes ao subalterno” [2], já o professor Paulo Otero, entende que se pode
definir o poder de substituição como a “permissão conferida pela ordem jurídica
de um órgão da Administração, (substituto), agir em vez de outro órgão
administrativo, (substituído), praticando atos sobre matérias cuja competência
primária ou normal pertence a este último”[3].
Esta divergência de conceção leva-nos à questão
proposta deste trabalho.
4) Diferentes posições
doutrinárias sobre a questão em causa.
Para podermos abordar melhor esta questão, temos de perceber qual a relação
entre o poder de substituição na administração e o princípio da legalidade,
sendo que o que está em causa é o princípio da legalidade da competência,
ou seja, tal como toda a Administração, também a competência administrativa
está sujeita a este princípio. Um princípio segundo o qual são inválidos os
atos praticados pelos órgãos da Administração fora da competência fixada por
lei, ou seja, este caracteriza-se como sendo um verdadeiro limite à competência
administrativa, não permitindo que esta seja exercida por qualquer órgão, mas
apenas por aquele ao qual a própria lei confere essa tal competência.
Entende-se, pois, que os órgãos da Administração não podem abdicar das funções
que lhes são atribuídas por lei, podendo apenas existir delegação de
competências nos casos expressamente fixados por lei.
Deste modo, entende-se que o poder de substituição entre autoridades
administrativas tem de estar previsto na lei por forma a respeitar o princípio
da legalidade da competência. A subordinação da Administração a este
princípio transforma o poder de substituição numa realidade excecional, estando
a sua legitimidade dependente daquilo que a lei dispõe. Todavia, esta questão
não é pacífica na doutrina, conforme se pode depreender pelas perspetivas
doutrinárias díspares de vários Professores.
Inicialmente, Marcelo Caetano formula uma teoria segundo a qual os poderes
do superior hierárquico compreendem os poderes do subalterno. O autor conclui
que o superior hierárquico pode resolver um caso da competência do subalterno,
bem como revogar esse ato. No entanto, mais tarde, Marcelo Caetano veio
reformular a sua tese inicial, admitindo que nem sempre se verifica a sua
afirmação inicial, pois constata como exceção o caso do direito de recorrer, ou
seja, exclui dos poderes do superior os casos em que a lei atribui expressamente
competência exclusiva aos subalternos. Porém, continua a entender e a defender que
o anteriormente explicitado representa o regime geral. Esta tese foi defendida
por outros autores, nomeadamente Armando Marques Guedes, André Gonçalves
Pereira e Sérvulo Correia.
Por outro lado, esta perspetiva, foi rejeitada por uma parte da doutrina,
inclusivamente por autores como Afonso Queiró e Rogério Soares. Afonso Queiró
entendia o poder de substituição como uma exceção, definindo-o como o “poder de
agir em vez do agente subordinado, no exercício da competência definida por
lei” [4]. Este autor refere que, na maior parte dos casos, é
atribuída competência exclusiva ao subalterno, não se verificando o tal regime
geral defendido por Marcelo Caetano. Seguindo este raciocínio, o poder de
substituição só será possível quando a lei o referir expressamente, não sendo,
de todo, um regime geral. O autor refere ainda que olhar e entender o poder de
substituição do superior hierárquico como um regime geral seria negar a
existência da verificação de legalidade por parte de dois órgãos acerca do
mesmo assunto, o que iria levar a consequências nocivas para a prossecução do
interesse público e para as garantias dos administrados face à Administração.
Assim sendo, o poder de substituição do superior hierárquico seria um último
recurso, só podendo existir nos casos em que o subalterno se recusa
injustificadamente a exercer a competência exclusiva de que é habilitado ou nos
casos em que se verifica uma situação de urgência.
Por sua vez, Rogério Soares defende que a regra geral seria a de que o
exercício da competência é concorrente entre o superior e o subalterno, pelo
que se entende que o poder de substituição do superior é um verdadeiro
princípio da hierarquia administrativa, aproximando-se mais da tese de Marcelo
Caetano.
O professor Diogo Freitas do Amaral é também crítico da tese de Marcelo
Caetano, não admitindo como regra geral a ideia de que os poderes do superior
hierárquico envolvem necessariamente os poderes do subalterno o que,
consequentemente, nos leva a concluir que, segundo este professor, o poder de
substituição não é uma faculdade inerente à competência do superior
hierárquico, mesmo que o superior hierárquico disponha do poder de revogação.
Nesta perspetiva, o poder de substituição representa uma destruição do
princípio da desconcentração, o que não é sustentável. Para sustentar a sua
tese, o Professor Diogo Freitas do Amaral invoca que a substituição é contrária
ao princípio da desconcentração ao qual a Administração está sujeita, sendo que
esta tem o poder de eliminar o duplo exame de legalidade. Para além disto,
realça que o superior não pode derrogar a lei que atribui competência ao
subalterno, reforçando este argumento afirmando que se a lei atribui
competência ao subalterno em vez de a atribuir ao superior significa que
considera que o interesse público será prosseguido de melhor forma por aquele.
Devem considerar-se excecionais todas as normas que possibilitem o superior
hierárquico substituir-se ao subalterno.
Importa ainda referir que o Professor Freitas do Amaral, como crítico da
tese do Professor Marcelo Caetano entende que a ressalva feita por este
relativamente ao suposto regime geral do poder de substituição representa uma
contradição da tese que se pretendia inicialmente defender, ou seja, da tese
segundo a qual haveria aqui um regime geral no que diz respeito ao poder de
substituição. Assim, segundo o Professor Freitas do Amaral, o subalterno, em
relação ao poder de substituição ou goza de competência exclusiva e, por
conseguinte, não se pode conceder poder de substituição ou, por outro lado,
goza de competência própria e os seus atos podem sempre ser alvo de recurso
hierárquico.
Já Rodrigo Queiró, afirma relativamente a esta temática que não se deve
adotar a «doutrina segundo a qual o superior pode sempre substituir-se ao
inferior no exercício da sua competência, quer devido aos interesses,
particularmente de natureza pública, que explicam e justificam a distribuição
da competência de cada ente público pelos seus vários órgãos, quer para evitar
a eliminação da garantia de uma dupla apreciação dos problemas da legalidade e
do mérito, postos no exercício de qualquer competência”[5].
Finalmente, o Professor Paulo Otero também analisou o poder de substituição
como um poder existente na relação hierárquica, logo não traduz uma derrogação
da norma que atribui competência ao subalterno, este poder apenas permite que o
superior hierárquico, ao substituir o subalterno, execute a norma. Portanto, há
uma legitimação primária, que corresponderá à do subalterno e uma legitimação
secundária ou revogatória, que corresponderá à do superior hierárquico.
Inicialmente, em estudo datado de 1987 elaborado pelo Professor, a definição de
poder de substituição dada era a de que aquele consistia na “permissão
conferida por lei a um órgão (substituto) de exercer, na totalidade ou em parte,
os poderes que pertencem primariamente à competência de um outro órgão
(substituído)” [6]. No entanto, em estudo
posterior, o professor citado vem admitir que aquela definição apresentava se
insuficiente, pelo facto de não ser verdade que a substituição é sempre
conferida por lei e também, porque a definição inicial implicava que o
substituto estivesse a exercer poderes alheios. O professor Paulo Otero acaba,
depois, por enquadrar a questão de modo ligeiramente diferente, ao afirmar que
o poder de substituição assenta na verificação de três elementos: o elemento
estrutural (um órgão age em vez do outro); o elemento funcional (permite
praticar atos que primariamente pertenciam a outro órgão); e, por fim, o
elemento legitimador (está sempre subjacente uma permissão conferida pela ordem
jurídica). Para além disso, entende que o Direito revela que toda a competência
do subalterno é suscetível ao poder de substituição por parte do superior
hierárquico, desde que se verifiquem os pressupostos legais. Assim, e de acordo
com o supramencionado, podemos concluir que o Professor Paulo Otero entende que
o poder de substituição pressupõe uma permissão conferida pela ordem jurídica e
tem a sua legitimidade sempre dependente de uma condição, pelo que o seu
exercício é subsidiário ou excecional. Importa referir que este poder de
substituição não deve ser confundido com a substituição que ocorre no âmbito do
poder de direção, essa substituição mediata é inerente ao vínculo hierárquico,
havendo, nas palavras do professor Paulo Otero “uma completa identidade de
competência material entre superior e subalterno” [7].
A lei, relativamente a este tema, dispõe no seguinte sentido: autoriza a
avocação (ato de chamar para si a competência) em matéria de delegação de
poderes, conforme dispõe o artigo 49º/2 CPA ou estabelece a competência
simultânea dos superiores e dos subalternos em processo disciplinar (artigo
196º/3 LGTFP). Não obstante, estas duas disposições têm um caráter excecional,
o que só vem enfatizar o valor da regra geral, ou seja, a regra segundo a qual
os poderes do superior hierárquico não abrangem os poderes do subalterno.
5) Conclusões
Após o estudo das diferentes posições acerca do poder de substituição do
superior hierárquico, é possível concluir, a meu ver, que existem algumas
posições que têm uma maior fundamentação no nosso ordenamento jurídico,
nomeadamente, a posição do Professor Diogo Freitas do Amaral.
De facto, é verdade que, não obstante existir uma relação hierárquica administrativa
e, consequentemente, poderes de direção que implicam um dever de obediência, o
exercício daqueles poderes comporta certas limitações, nomeadamente no que diz
respeito ao poder de substituição e, apesar de não ter sido desenvolvido aqui,
ao dever de obediência. Estes dois casos enfatizam a subordinação da
Administração ao princípio da legalidade, nomeadamente, ao princípio
da legalidade da competência, no caso do poder de substituição.
Conclui se, que é possível entender que o estudo da Administração carece de
uma compreensão dos princípios constitucionais aos quais esta está subordinada.
Relativamente ao poder de substituição, estando este sujeito ao princípio da
legalidade da competência, e por forma a adotarmos uma posição doutrinária,
devemos atender, principalmente, às implicações que a subordinação àquele
princípio tem. A doutrina maioritária defende, pois, o poder de substituição
como uma exceção, sendo a posição do Professor Marcelo Caetano manifestamente
menos adotada e defendida na doutrina.
6) Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito
Administrativo, vol. I, 4ª edição;
OTERO, Paulo, Curso de Direito Administrativo,
vol. I, Almedina, 2016.
OTERO, Paulo, O poder de substituição em
direito administrativo: enquadramento dogmático-constitucional, 1996;
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues, Lições de Direito
Administrativo, 1976;
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Lições de Direito
Administrativo, 1999;
VALENTE, Luiz Costa da Cunha, A hierarquia
administrativa, Coimbra ed., 1939;
______________________
[1] Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso
de Direito Administrativo, 4ª ed., Almedina, 2020, p.665;
[2] Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso
de Direito Administrativo, 4ª ed., Almedina, 2020, p.677;
[3] Cfr. PAULO OTERO, O poder de
substituição em direito administrativo: enquadramento dogmático-constitucional,
vol. II, 1995, p.391
[4] in Lições…, vol. I, (1959), p.322
[5] in Dicionário Jurídico da Administração
Pública, vol. II,
2ª ed., pp. 537 ss
[6] Cfr. PAULO OTERO, O poder de substituição em direito administrativo:
enquadramento dogmático-constitucional, vol. II, 1995, p. 390
[7] Cfr. PAULO OTERO, O poder de substituição em direito administrativo:
enquadramento dogmático-constitucional, vol. II, 1995, p. 438
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