A Compatibilidade da Discricionariedade da Administração e os Conceitos Indeterminados
I.
Introdução
a) Considerações sobre o poder
discricionário da Administração
b) Breve análise sobre os conceitos
indeterminados
II.
Desenvolvimento
a) A arbitrariedade no preenchimento
valorativo de conceitos indeterminados
b)
Relação
dos conceitos indeterminados com a discricionariedade (posições doutrinárias)
c) Posição Adotada
III. Conclusão
IV.
Bibliografia
I.
Introdução
a) Considerações sobre o poder discricionário da Administração
A discricionariedade da
Administração coloca várias dúvidas em diversos planos visto que à
Administração cumpre concretizar a vontade do ordenamento jurídico e do
legislador. Para efeitos do presente trabalho, destacam-se as seguintes
observações:
1. O poder discricionário da
administração corresponde a um espaço de avaliação e decisão próprio, da
responsabilidade (autoria) da Administração, decorrente de uma indeterminação
legal (conceitual ou estrutural) e sujeito a um controlo atenuado
(fiscalização) pelo juiz[1].
2.
Este
não colide com o princípio da legalidade visto que aquele é um poder derivado
da lei, “só existe quando a lei o confere e na medida em que a lei o configura”[2].
[3]
3. A atribuição de discricionariedade
à Administração pretende tratar equitativamente os casos considerados
individualmente.
b) Breve análise sobre os conceitos indeterminados
De acordo com Menezes
Cordeiro[4],
os conceitos indeterminados correspondem a “proposições ou fórmulas
linguísticas juridicamente relevantes” que “não permitem comunicações claras
quanto ao seu conteúdo“ devido a “polissemia, vaguidade, ambiguidade,
porosidade ou esvaziamento”[5].
Deste modo, estes conceitos só passam a ser juridicamente atuantes mediante a
sua complementação com valorações, obtendo-se a regra do caso[6].
Em sentido semelhante
determina Karl Engisch ao considerar que os conceitos indeterminados são
aqueles que não possuem um sentido preciso e inequívoco (tendo um “conteúdo e
extensão (...) em larga medida incertos”[7]).
Face ao exposto, os
conceitos indeterminados carecem de preenchimento valorativo, o qual se afigura
relevante analisar de modo a compreender se existe a possibilidade de
utilização arbitrária destes conceitos, concluindo pela sua distância,
proximidade ou coincidência com a discricionariedade da Administração.
II.
Desenvolvimento
a)
A
arbitrariedade no preenchimento valorativo de conceitos indeterminados
No entendimento de
Menezes Cordeiro, “os conceitos indeterminados não são, necessariamente, de
utilização arbitrária”, admitindo que existem indícios que propõe as variáveis
a ponderar e o seu peso relativo[8]
no preenchimento valorativo. Adicionalmente, enuncia os seguintes limites a
este processo[9]:
- limites estruturais – sendo que, nas decisões, a
concretização dos conceitos indeterminados nunca atinge o grau de precisão dos
conceitos determinados por questões de segurança jurídica.
- limites circunstanciais – “as referências materiais
podem escassear” deixando uma margem de discricionariedade ao
intérprete-aplicador.
No
que respeita à “margem de discricionariedade”, segundo Menezes Cordeiro e Karl
Engisch, a sua concretização nunca é absoluta, devendo seguir vetores gerais[10].
Neste sentido, a lei pode atribuir poder discricionário à administração por
meio de um conceito indeterminado, sem prejuízo da sua sujeição aos elementos
próprios do conceito.
b)
Relação
dos conceitos indeterminados com a discricionariedade (posições doutrinárias)
Nesta alínea
pretende-se apresentar as posições da doutrina quanto à seguinte questão: A
interpretação de conceitos indeterminados é uma atividade vinculada ou
discricionária?
Segundo Freitas do
Amaral, os conceitos indeterminados, dada a sua heterogeneidade, podem
distinguir-se em dois tipos:
-
conceitos indeterminados cuja concretização envolve apenas operações de
interpretação da lei e de subsunção, não havendo qualquer discricionariedade
pelo órgão decisor[11].
-
conceitos indeterminado “cuja concretização apela já para preenchimentos
valorativos por parte do órgão administrativo aplicador do direito”. Esta
valoração pode ser uma das seguintes[12]:
- valoração
objetiva – o órgão deve procurar e determinar as valorações preexistentes
num setor relevante. Serve de exemplo a concretização de “bons costumes”, que
obriga ao órgão averiguar as “conceções éticas efetivamente vigentes”.
- valoração
pessoal – compete ao órgão decisor fazer um juízo pessoal (“baseado na sua
experiência e nas suas convicções que não é determinado, mas enquadrado por
critérios jurídicos”[13]).
Serve de exemplo os artigos 71.º/2 e 95.º/5 do CPTA.
Neste
sentido, Freitas do Amaral sustenta que o preenchimento valorativo de conceitos
indeterminados podem exigir apenas a interpretação da lei, sem discricionariedade
pelo órgão decisor (atividade vinculada), ou podemos estar perante conceitos
que exigem o exercício de discricionariedade[14]
(atividade discricionária).[15]
Por outro lado, Sérvulo
Correia considera que se distinguem dois momentos quanto à discricionariedade
no processo administrativo: a “margem de livre apreciação” (momento em que a
administração aprecia as circunstâncias de facto) e a “margem de livre decisão”
(modo como a administração vai configurar a decisão final). Neste seguimento, e
tendo em conta que se refere a conceitos indeterminados, considera que a “margem de livre apreciação”[16]
não está sujeita a uma “ponderação de interesses, estando dependente apenas a
um imperativo de adequação e não às outras vertentes do princípio da
proporcionalidade”[17].
Assim, o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados não se confunde
com a discricionariedade da Administração, sendo uma atividade vinculada.
No entendimento de
Eduardo García de Enterría, o preenchimento valorativo de conceitos
indeterminados não apresenta qualquer “processo volutivo”, mas, unicamente, um
processo de aplicação e interpretação da lei[18].
c)
Posição
Adotada
Face ao exposto,
retiram-se duas importantes conclusões que consubstanciam a posição a adotar:
1.
A
discricionariedade distingue-se, tecnicamente, do preenchimento valorativo de
conceitos indeterminados, não obstante a possibilidade de existirem conceitos
indeterminados que possam ser sujeitos a valorações pessoais.
2. A interpretação de conceitos indeterminados pode ser uma atividade vinculada ou uma atividade discricionária, sendo que, nesta última, ainda estaríamos perante limites plausíveis da lei.
Neste sentido, adota-se
a posição do professor Freitas do Amaral por se considerar mais flexível para a
atuação da Administração quando deparada com situações que envolvam a
concretização de conceitos indeterminados, permitindo-se a adoção de uma
solução mais justa, sem prejuízo dos limites que esse conceito apresente.
III.
Conclusão
Em modo de conclusão, a
caracterização da concretização de conceitos carecidos de preenchimento
valorativo como ato vinculado ou discricionário é uma discussão importante pela
sua relevância na determinação da função da Administração e dos seus próprios
poderes, sendo alvo de debate até aos dias de hoje.
IV.
Bibliografia
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos,
Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, Imprensa da Universidade de
Coimbra
FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de
Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, Almedina.
MENEZES CORDEIRO, António, Tratado
de Direito Civil Tomo I, 4ª edição,
Almedina.
ENGISCH, Karl, Introdução do
Pensamento Jurídico, 6ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian.
SÉRVULO CORREIA, José Manuel,
Cadernos de Justiça Administrativa, “Conceitos jurídicos indeterminados e
âmbito do controlo jurisdicional”.
NUNES FERNANDES, Karen Ilanit
Vernier, Tese de mestrado em Direito, “A Discricionariedade Administrativa face
ao princípio da boa administração”.
[1] VIEIRA
DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, Imprensa
da Universidade de Coimbra, p. 60.
[2] FREITAS
DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p.78.
[3]
Contrariamente, Marcelo Caetano considerava que o princípio da
discricionariedade seria uma exceção ao princípio da legalidade.
[4] MENEZES
CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I, 4ª edição, Almedina, p. 773.
[5]
“Polissemia quando tenha vários sentidos, vaguidade quando permita uma
informação de extensão larga e compreensão escassa, ambiguidade quando possa
reportar-se a mais de um dos elementos integrados na proposição onde o conceito
se insira, porosidade quando ocorra uma evolução semântica com todo um percurso
onde o sentido do termo se deva encontrar e esvaziamento quando falte qualquer
sentido útil”.
[6] MENEZES
CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I, 4ª edição, Almedina, p. 775.
[7] ENGISCH,
Karl, Introdução do Pensamento Jurídico, 6ª edição, Fundação Calouste
Gulbenkian, p. 208.
[8] MENEZES
CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I, 4ª edição, Almedina, p. 777.
[9] MENEZES
CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I, 4ª edição, Almedina, p. 778.
[10] P.e.
“finalidade que levou o ordenamento a prever a indeterminação” (MENEZES
CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I, 4ª edição, Almedina, p. 778).
[11] FREITAS
DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p. 95
e 96.
[12] FREITAS
DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p. 96.
[13] FREITAS
DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p. 97.
[14] FREITAS
DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p.100
e 101.
[15]
Acrescenta-se ainda que, quanto a estes atos, o tribunal não poderia proceder à
anulação porque, “se o fizesse, estaria a apreciar o mérito do ato”,
desempenhando a função administrativa e não a jurisdicional (o que contraria o
princípio da separação de poderes).
[16] SÉRVULO
CORREIA, José Manuel, Cadernos de Justiça Administrativa, “Conceitos jurídicos
indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional”, p. 30 e 57
[17] VIEIRA
DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, Imprensa
da Universidade de Coimbra, p. 60
[18] NUNES
FERNANDES, Karen Ilanit Vernier, Tese de mestrado em Direito, “A
Discricionariedade Administrativa face ao princípio da boa administração”,
2015, p. 17 e 18.
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