A Compatibilidade da Discricionariedade da Administração e os Conceitos Indeterminados



Guilherme Tomás Santos Silva

I.              Introdução 

a)     Considerações sobre o poder discricionário da Administração

b)    Breve análise sobre os conceitos indeterminados

 

II.            Desenvolvimento 

a)     A arbitrariedade no preenchimento valorativo de conceitos indeterminados

b)    Relação dos conceitos indeterminados com a discricionariedade (posições doutrinárias)

c)     Posição Adotada

 

III.          Conclusão

IV.          Bibliografia

 

 

I.              Introdução

 

a)    Considerações sobre o poder discricionário da Administração

A discricionariedade da Administração coloca várias dúvidas em diversos planos visto que à Administração cumpre concretizar a vontade do ordenamento jurídico e do legislador. Para efeitos do presente trabalho, destacam-se as seguintes observações:

1.     O poder discricionário da administração corresponde a um espaço de avaliação e decisão próprio, da responsabilidade (autoria) da Administração, decorrente de uma indeterminação legal (conceitual ou estrutural) e sujeito a um controlo atenuado (fiscalização) pelo juiz[1].

2.     Este não colide com o princípio da legalidade visto que aquele é um poder derivado da lei, “só existe quando a lei o confere e na medida em que a lei o configura”[2]. [3]

3.     A atribuição de discricionariedade à Administração pretende tratar equitativamente os casos considerados individualmente.

 

b)    Breve análise sobre os conceitos indeterminados

De acordo com Menezes Cordeiro[4], os conceitos indeterminados correspondem a “proposições ou fórmulas linguísticas juridicamente relevantes” que “não permitem comunicações claras quanto ao seu conteúdo“ devido a “polissemia, vaguidade, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento”[5]. Deste modo, estes conceitos só passam a ser juridicamente atuantes mediante a sua complementação com valorações, obtendo-se a regra do caso[6].

Em sentido semelhante determina Karl Engisch ao considerar que os conceitos indeterminados são aqueles que não possuem um sentido preciso e inequívoco (tendo um “conteúdo e extensão (...) em larga medida incertos”[7]).

Face ao exposto, os conceitos indeterminados carecem de preenchimento valorativo, o qual se afigura relevante analisar de modo a compreender se existe a possibilidade de utilização arbitrária destes conceitos, concluindo pela sua distância, proximidade ou coincidência com a discricionariedade da Administração.

 

II.            Desenvolvimento 

a)    A arbitrariedade no preenchimento valorativo de conceitos indeterminados

No entendimento de Menezes Cordeiro, “os conceitos indeterminados não são, necessariamente, de utilização arbitrária”, admitindo que existem indícios que propõe as variáveis a ponderar e o seu peso relativo[8] no preenchimento valorativo. Adicionalmente, enuncia os seguintes limites a este processo[9]:

            - limites estruturais – sendo que, nas decisões, a concretização dos conceitos indeterminados nunca atinge o grau de precisão dos conceitos determinados por questões de segurança jurídica.

            - limites circunstanciais – “as referências materiais podem escassear” deixando uma margem de discricionariedade ao intérprete-aplicador.

            No que respeita à “margem de discricionariedade”, segundo Menezes Cordeiro e Karl Engisch, a sua concretização nunca é absoluta, devendo seguir vetores gerais[10]. Neste sentido, a lei pode atribuir poder discricionário à administração por meio de um conceito indeterminado, sem prejuízo da sua sujeição aos elementos próprios do conceito.

           

b)    Relação dos conceitos indeterminados com a discricionariedade (posições doutrinárias)

Nesta alínea pretende-se apresentar as posições da doutrina quanto à seguinte questão: A interpretação de conceitos indeterminados é uma atividade vinculada ou discricionária?

Segundo Freitas do Amaral, os conceitos indeterminados, dada a sua heterogeneidade, podem distinguir-se em dois tipos:

                        - conceitos indeterminados cuja concretização envolve apenas operações de interpretação da lei e de subsunção, não havendo qualquer discricionariedade pelo órgão decisor[11].

                        - conceitos indeterminado “cuja concretização apela já para preenchimentos valorativos por parte do órgão administrativo aplicador do direito”. Esta valoração pode ser uma das seguintes[12]:

- valoração objetiva – o órgão deve procurar e determinar as valorações preexistentes num setor relevante. Serve de exemplo a concretização de “bons costumes”, que obriga ao órgão averiguar as “conceções éticas efetivamente vigentes”.

- valoração pessoal – compete ao órgão decisor fazer um juízo pessoal (“baseado na sua experiência e nas suas convicções que não é determinado, mas enquadrado por critérios jurídicos”[13]). Serve de exemplo os artigos 71.º/2 e 95.º/5 do CPTA.

            Neste sentido, Freitas do Amaral sustenta que o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados podem exigir apenas a interpretação da lei, sem discricionariedade pelo órgão decisor (atividade vinculada), ou podemos estar perante conceitos que exigem o exercício de discricionariedade[14] (atividade discricionária).[15]

 

Por outro lado, Sérvulo Correia considera que se distinguem dois momentos quanto à discricionariedade no processo administrativo: a “margem de livre apreciação” (momento em que a administração aprecia as circunstâncias de facto) e a “margem de livre decisão” (modo como a administração vai configurar a decisão final). Neste seguimento, e tendo em conta que se refere a conceitos indeterminados, considera que  a “margem de livre apreciação”[16] não está sujeita a uma “ponderação de interesses, estando dependente apenas a um imperativo de adequação e não às outras vertentes do princípio da proporcionalidade”[17]. Assim, o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados não se confunde com a discricionariedade da Administração, sendo uma atividade vinculada.

No entendimento de Eduardo García de Enterría, o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados não apresenta qualquer “processo volutivo”, mas, unicamente, um processo de aplicação e interpretação da lei[18].

 

c)     Posição Adotada

Face ao exposto, retiram-se duas importantes conclusões que consubstanciam a posição a adotar:

1.     A discricionariedade distingue-se, tecnicamente, do preenchimento valorativo de conceitos indeterminados, não obstante a possibilidade de existirem conceitos indeterminados que possam ser sujeitos a valorações pessoais.

2.     A interpretação de conceitos indeterminados pode ser uma atividade vinculada ou uma atividade discricionária, sendo que, nesta última, ainda estaríamos perante limites plausíveis da lei.

Neste sentido, adota-se a posição do professor Freitas do Amaral por se considerar mais flexível para a atuação da Administração quando deparada com situações que envolvam a concretização de conceitos indeterminados, permitindo-se a adoção de uma solução mais justa, sem prejuízo dos limites que esse conceito apresente.

 

III.          Conclusão

Em modo de conclusão, a caracterização da concretização de conceitos carecidos de preenchimento valorativo como ato vinculado ou discricionário é uma discussão importante pela sua relevância na determinação da função da Administração e dos seus próprios poderes, sendo alvo de debate até aos dias de hoje.

 

IV.          Bibliografia

 

VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, Almedina.

MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I,  4ª edição, Almedina.

ENGISCH, Karl, Introdução do Pensamento Jurídico, 6ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian.

SÉRVULO CORREIA, José Manuel, Cadernos de Justiça Administrativa, “Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional”.

NUNES FERNANDES, Karen Ilanit Vernier, Tese de mestrado em Direito, “A Discricionariedade Administrativa face ao princípio da boa administração”.



[1] VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 60.

[2] FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p.78.

[3] Contrariamente, Marcelo Caetano considerava que o princípio da discricionariedade seria uma exceção ao princípio da legalidade.

[4] MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I,  4ª edição, Almedina, p. 773.

[5] “Polissemia quando tenha vários sentidos, vaguidade quando permita uma informação de extensão larga e compreensão escassa, ambiguidade quando possa reportar-se a mais de um dos elementos integrados na proposição onde o conceito se insira, porosidade quando ocorra uma evolução semântica com todo um percurso onde o sentido do termo se deva encontrar e esvaziamento quando falte qualquer sentido útil”.

[6] MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I,  4ª edição, Almedina, p. 775.

[7] ENGISCH, Karl, Introdução do Pensamento Jurídico, 6ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 208.

[8] MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I,  4ª edição, Almedina, p. 777.

[9] MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I,  4ª edição, Almedina, p. 778.

[10] P.e. “finalidade que levou o ordenamento a prever a indeterminação” (MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Tomo I,  4ª edição, Almedina, p. 778).

[11] FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p. 95 e 96.

[12] FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p. 96.

[13] FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p. 97.

[14] FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.º edição, p.100 e 101.

[15] Acrescenta-se ainda que, quanto a estes atos, o tribunal não poderia proceder à anulação porque, “se o fizesse, estaria a apreciar o mérito do ato”, desempenhando a função administrativa e não a jurisdicional (o que contraria o princípio da separação de poderes).

[16] SÉRVULO CORREIA, José Manuel, Cadernos de Justiça Administrativa, “Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional”, p. 30 e 57

[17] VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 60

[18] NUNES FERNANDES, Karen Ilanit Vernier, Tese de mestrado em Direito, “A Discricionariedade Administrativa face ao princípio da boa administração”, 2015, p. 17 e 18.

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