Análise ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Fevereiro de 2018

 

Análise ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Fevereiro de 2018

Gabriela Oliveira Camões

I. A norma e objetivo em análise

Regulamento Municipal de Parques, Zonas de Estacionamento de Duração Limitada e Bolsas de Estacionamento, de 4 de maio de 2010

Artigo 14°-A
Competência para a aplicação de coimas

1.      O processamento das contra-ordenações, previstas no presente Regulamento, compete à Câmara Municipal de São João da Madeira e a aplicação das coimas é da competência do Presidente da Câmara.

2.      A aplicação da coima é precedida da entrega ao infractor ou deposição no veículo do correspondente aviso de contra-ordenação.

No presente acórdão realça-se a matéria relativa a um dos limites ao poder regulamentar, especificamente a prevalência absoluta da lei sobre os regulamentos. Encontramo-nos aqui perante uma aferição de contrariedade ou não do Princípio da Legalidade, sendo neste caso, uma contraposição entre o Código da Estrada e legislação complementar, e um regulamento municipal sobre competência para prever e taxar o estacionamento em parques e zonas de estacionamento por tempo superior ao estabelecido, tendo de perceber se a Câmara Municipal de S. João da Madeira teria regulado sobre matéria da competência da Associação Nacional de Segurança Rodoviária (ASNR).

II. Argumento do Autor/Recorrido, no caso o Ministério Público

Foi argumentado que a norma do regulamento acima exposta era manifestamente ilegal por violação do disposto no art.169º do Código da Estrada e art.2º do DL nº 77/2007 de 29 de março quanto às atribuições da ASNR, que atribui claramente a competência do processamento de contraordenações à mesma.

 O art.169º, nº7 do Código da Estrada no momento do acórdão, abre contudo, a possibilidade do processamento de contraordenações ser atribuído à Câmara Municipal se estiverem reunidas as condições nele previstas, o que não verificou neste caso.

 

III. Argumento dos Recorrentes, no caso a Câmara Municipal de São João da Madeira

A exposição inicia-se nesta sentença, afirmando que o Ministério Público apresentou argumentos juridicamente corretos que indicam a ilegalidade do regulamento. No entanto, apresentam as suas razões para recorrer: a) Afirmam então que a matéria do regulamento não versa sobre estacionamento proibido, ou seja, versa sobre áreas de estacionamento permitido, e por isso não é englobado pelo art.71º do Código da Estrada quanto ao estacionamento proibido e suas coimas, que é aceite que é da total competência da ASNR; e ainda que por não se constituírem razões de segurança rodoviária, não estão a interferir nas atribuições conferidas à mesma pelo Código da Estrada e pelo seu DL constitutivo; b) consideram que o art.2º do DL 81/2006 de 20 de Abril ao estipular que as condições de utilização e taxas devidas pelo estacionamento em zonas urbanas são aprovadas por Regulamento Municipal, que não só é reconhecida aos órgãos municipais a autonomia normativa desse regime, como nos artigos 7º e ss. do mesmo diploma o legislador organiza um regime geral contraordenacional cometendo competência à Câmara Municipal para a fiscalização e instrução destes processos - também as taxas devidas em zonas de estacionamento de duração limitada são da competência das Câmaras Municipais no quadro da autonomia financeira dos Municípios cuja lei habilitante é igualmente o Decreto-lei n.º 81/2006 de 20 de Abril, como consagração do Princípio da Autonomia Local e da Lei das Finanças Locais; c) argumentam ainda que a ratio legis do regulamento municipal é a satisfação do interesse público local, como a garantia de acesso livre, ainda que taxado, dos cidadãos aos espaços de maior afluência pública ou aos serviços públicos, como o fim público ambiental e de ordenamento territorial, moderando-se o acesso do veículo automóvel privado em espaço urbano, bem como a regulação do tráfego citadino, tudo fins locais, de modo algum compagináveis com uma política de segurança ou ordenação rodoviária geral.

Em súmula, com base no poder regulamentar próprio, constante do art.241º da CRP, e independente das Autarquias Locais, no âmbito das suas atribuições e competências, como corolário do Princípio do Poder Local consagrado no art.235º da CRP e ss., a Câmara Municipal de São João da Madeira considera que tem e deve ter competência para versar em forma de regulamento sobre estas matérias.

 

IV.  A decisão

Após a Lei Orgânica do Ministério da Administração Interna, aprovada pelo DL nº203/2006 de 27 de Outubro, que contemplava a criação da ASNR, e após o DL nº 77/2007 de 29 de Março, é nítido que as funções do Ministério no que respeita à prevenção e segurança rodoviária foram centralizadas nesta mesma entidade, inclusive as componentes de processamento das contraordenações rodoviárias, por uma questão de eficiência e rapidez desses mesmos processos.

Como referido supra, é aberta a possibilidade no nº7 do art.169º do Código da Estrada em vigor à data do acórdão, que esta competência seja atribuída à Câmara Municipal, mediante um processo previsto no mesmo, o que não foi prosseguido neste caso. A Lei nº 72/2013, ao permitir que em determinadas condições, essa competência seja do órgão municipal, demonstra que essas entidades não tinham tal poder, e que só o teriam se preenchessem as condições previstas. Conclui ainda que o art.131º do Código da Estrada que estatui o conceito de contraordenação rodoviária, abrange o estacionamento em parques e zonas de estacionamento por tempo superior ao estabelecido ou sem o pagamento da taxa devida, não se aceitando então a posição de competir à ASNR apenas as situações de estacionamento proibido. Não é aceite também a posição, com base no DL nº81/2006 e respetivos artigos já expostos no argumento do recorrente, que é demonstrativo de um princípio geral da competência autárquica integral no domínio contra-ordenacional, pois esta não se presume e, em face do que já ficou referido, não se pode concluir que o legislador tenha dito menos do que pretendia. Pelo contrário, a não previsão expressa da contra-ordenação em causa significa que a sua intenção foi a de que ela fosse tratada como as demais contra-ordenações estradais previstas no C. Estrada. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e mantém-se a ilegalidade do art.14ºA do Regulamento Municipal de Parques, Zonas de Estacionamento de Duração Limitada e Bolsas de Estacionamento, de 4 de maio de 2010.

V. Análise Jurídica

Cabe primeiramente ter em conta o conceito do Princípio da Legalidade, consagrado no art.3º do CPA e no art.266º nº2 da CRP, no seguimento de que a Administração está subordinada a toda a ordem jurídica. Segundo o Professor Freitas do Amaral, os órgãos e agentes da Administração Pública só podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites nela impostos. O objetivo da Administração Pública é a prossecução do interesse público, mas não é a Administração que o define, é a lei. Atualmente, é entendida pela doutrina esta ideia de Princípio da Legalidade como um todo, e segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, devemos tender para a ideia de um princípio da juridicidade, visto que a subordinação que se verifica não existe apenas em relação à ordem jurídica em causa, mas também ao nível de Direito Europeu e Direito Internacional Público. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa e o Professor Freitas do Amaral dividem ainda este princípio em duas modalidades: a preferência de lei, e a reserva de lei. O Princípio da Legalidade encontra significado no contexto de poder regulamentar como limite ao mesmo, no sentido de preferência de lei sobre qualquer regulamento, sendo a matéria deste acórdão um exemplo claro deste tipo de situações. Aquando do poder regulamentar, este princípio desdobra-se ainda na vertente de reserva de lei, não podendo um regulamento desenvolver-se nasáreas que estão constitucionalmente reservadas à lei (no máximo através de regulamentos de execução) e sempre estando precedido de uma lei habilitante para o exercício dessa mesma atividade administrativa.

Cabe referir neste sentido, ainda que não tendo entrado em vigência, a aprovação do Regulamento autárquico se encontrou no âmbito da prossecução das atribuições da autarquia local, que quanto a esta matéria, está prevista na alínea r) do art.33º da Lei das Autarquias Locais nº75/2013. As autarquias locais são dotadas de poder regulamentar, ao abrigo do art.241º da CRP, tendo sempre de definir a sua competência para a emissão do mesmo através de lei habilitante, art.136º nº1 e 2 do CPA, que neste caso já foi referida. Importa ainda referir que, se legal, este constituiria, ao abrigo da distinção de Freitas do Amaral, a forma de regulamento de execução, sendo estes aqueles que desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica constante de uma lei, complementando-a, no sentido de que o Código da Estrada já no seu art.169º prevê o processamento de contraordenações rodoviárias, e a autarquia limitar-se-ia a desenvolver esta disciplina jurídica.

Apesar da decisão do STA ser no sentido de manter o regulamento improcedente, será importante referir que, com a alteração ao Código da Estrada pelo DL 107/2018 de 29 de Novembro, no âmbito de uma transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público, o art.169º do mesmo, que anteriormente apenas previa a possibilidade de competir à Câmara Municipal o processamento de contraordenações rodoviárias e aplicação das respetivas coimas e sanções necessárias, mediante o preenchimento de determinados requisitos,  foi alterado e passou a prever no seu nº7 que “A competência para o processamento e aplicação de coimas nas contraordenações rodoviárias por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, nas vias e nos demais espaços públicos quer dentro das localidades, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal, é da respetiva câmara municipal.”

Atualmente cabe à Câmara Municipal de São João da Madeira estabelecer, através de regulamento a matéria contraordenacional que, até à data do acórdão, não podiam.

Apesar da decisão ter sido a mais óbvia tendo em conta o direito vigente, compreende-se os Municípios poderem estabelecer os limites para contraordenações relativas a estacionamento, como corolário do Princípio da Autonomia Local, consagrando também o Princípio da aproximação da Administração às populações, que segundo o Professor Marcelo Rebelo de Sousa se desdobra em três, importando aqui discernir o Princípio da Descentralização Administrativa e o Princípio da Desconcentração, ambos

previstos no nº2 do art.267º da CRP, referindo-se o primeiro à exigência de que o exercício da função administrativa seja cometido a diversas pessoas coletivas além do Estado-Administração, entendido não só neste sentido formal, mas também através da concessão de atribuições e competências aos órgãos destas pessoas coletivas para aproximar efetivamente a Administração e as populações. O último, assentando numa ideia de repartição de competências entre os vários órgãos de uma pessoa coletiva para a prossecução das suas atribuições. Relacionam-se assim com o seu princípio geral, que assenta no pressuposto de que as necessidades coletivas são melhor satisfeitas através de pessoas coletivas, órgãos e serviços administrativos próximos daqueles que as experimentam.

Os órgãos municipais são os mais preparados para responder às especificidades locais e materiais, às quais a ASNR pode não estar preparada, obtendo uma satisfação mais correta das necessidades coletivas da sua população, tendo em conta fatores como o turismo na cidade, zonas históricas, trânsito em certos locais, entre outros.

Pelo que, do ponto de vista da uniformidade do Direito Administrativo, concordo com a decisão do STA, considerando o direito vigente à data.

 

VI. Bibliografia

AMARAL, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo. Vol. II, 2ª edição, Lisboa, Almedina, 2011

SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral – Introdução e princípios fundamentais. 3ª edição, Dom Quixote

Gabriela Camões

Nº 62867

Subturma 12

 

 

 

 

 

 

 

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