Do silêncio administrativo: a política de braços cruzados da administração


Sumário: 1. Considerações históricas; 2. Evolução legislativa e solução atual; 3. O problema da natureza do ato tácito; 4. Nota Conclusiva.

1.      Considerações históricas

Embora constitua realidade infeliz, não é incomum que o particular que exerça os seus direitos se depare com uma administração silente. Mas se, regra geral, a omissão da administração nem sempre releva para a produção de efeitos jurídicos, existem hipóteses em que este silêncio se revela de tal modo ensurdecedor que o direito se vê obrigado a atribuir-lhe um dado valor. Geralmente, tal sucede quando o silêncio implique uma severa agressão aos direitos subjetivos dos particulares. Admitir que alguma consequência deve existir é consensual. As dúvidas surgem aquando da ponderação de que valor, exatamente, atribuir a tal silêncio.

Já no século XIX vinha a doutrina francesa proceder com uma tentativa de resposta, criando a figura designada por ato tácito de indeferimento, que pressupõe que havendo um dever de pronúncia por parte do orgão da administração e limitando-se este a permanecer em silêncio, este deveria ser tacitamente entendido como um ato de rejeição da Administração à pretensão do particular[1].

Neste sentido HAURIOU, que destaca que existia efetivamente uma verdadeira lacuna na lei francesa, havendo uma viva necessidade de reforma que só vem a ser concretizada pela lei de 17 de julho de 1900. Do diploma o autor viria a retirar a ilação acima explícita, de que o silêncio teria um valor negativo (“si l’autorité [...] garde le silence [...] ce silence est assimilé à un rejet de la réclamation”)[2].

Mas também a nossa dourina se viu confrontada com a presente problemática, tendo a figura do ato tácito negativo, do direito francês, sido posterirmente acolhida pela lei portuguesa, em 1929, no Regimento do Conselho Superior das Colónias (aprovado pelo Decreto n.º 17759, de 14 de Dezembro), em particular no seu art. 58.º, tendo o diploma sido alargado, mais tarde, a todo o direito administrativo com a Base XXII da Lei n.º1940, de 3 de abril de 1936, sendo de salientar ainda o desenvolvimento sobre a matéria no art. 290.º do Código Administrativo[3] desse mesmo ano (“§1º – a falta de deliberação dentro do prazo estabelecido neste artigo equivale, para efeitos de recurso contencioso, ao indeferimento do requerimento apresentado”).

Consubstancia-se nesta fase um entendimento indubitavelmente negativo do silêncio em que bastava a administração “abster-se face a uma pretensão que lhe tivesse sido dirigida para impedir o particular de fazer valer contenciosamente as suas pretensões, privando-o do único meio eficaz de que dispunha para obter a tutela pretendida”[4]. Destaca, neste seguimento, VASCO PEREIRA DA SILVA (que não subscreve à presente solução), a existência de uma lógica francamente inadequada de puro fingimento[5], e de facto, sucede exatamente isso: a administração nada faz; mas finge-se que fez.

Contudo, a solução acima preconizada não seria a única alternativa. Para além da atribuição de um valor negativo ao silêncio, poder-se-ia entendê-lo de modo positivo, ou seja: entender que tendo o particular dirigido um pedido a administração, sem obtenção de resposta no prazo legal previsto, e tendo o orgão em causa o dever de se pronunciar sobre a matéria, dever-se-ia entender que o pedido estaria satisfeito ou “deferido” (ato tácito positivo)[6].

Perante esta dicotomia dogmática, retiram-se algumas conclusões, designadamente: que a primeira tese favorece a Administração Pública, pois da sua omissão não se extrairão consequências que lhe afetem negativamente, mas deixa o particular numa situação em que terá de instaurar uma ação judicial contra a administração; já na segunda tese, o particular é, evidentemente, a entidade favorecida, pois vê satisfeita a sua pretensão, contudo, será inconveniente para a administração não olhando para os motivos que possam ter gerado a omissão (que podem ser dos mais diversos)[7].

2.      Evolução legislativa e solução atual

Sendo certo que, numa fase inicial, vingou em Portugal o sistema do indeferimento tácito (com algumas escassas previsões de aplicação do sistema oposto), há uma tentativa de alteração do paradigma com o projeto de CPA. Neste adota-se uma solução original: não haveria aplicação de um dos sistemas em exclusivo, mas sim uma conjugação de ambos, em domínios diversos.

A solução resultaria, no fundo, de um compromisso entre as opiniões divergentes que existiam na equipa responsável pelo  projeto de CPA, tendo a matéria sido repartida por dois artigos do código – 108.º e 109.º. Contudo, a tentativa revelou-se infrutífera, já que a lista taxativa estatuída no art. 108.º limitou drasticamente o âmbito de aplicação do sistema do deferimento tácito. Assim, em vez de uma coexistência de dois sistemas, cada um no seu domínio, continuou, na prática, a existir apenas uma regra: a do indeferimento tácito (com algumas exceções de aplicabilidade do deferimento tácito). Comenta JOÃO CAUPERS que: “era uma situação criticável para quem, como nós, considerava desejável a generalização do sistema do deferimento tácito”[8].

Naturalmente, e como já acima havíamos apontado, sendo este o sistema mais desfavorável aos particulares, demonstrou-se incapaz de proteger de modo eficaz os direitos dos interessados.

Foi com a posterior Reforma da Justiça Administrativa, em 2002 (entrando em vigor em 2004), que ocorreu uma alteração fundamental; não se erradica o ato tácito negativo, contudo, estabelece-se nova consequência para a omissão administrativa: o interessado pode requerer ao tribunal administrativo que condene a entidade pública à prática do ato administrativo devido, ao abrigo do disposto no art. 67.º/1, al. a) do CPTA.

E neste sentido têm evoluído diversos ordenamentos: em vez de enveredar pela via do recurso do ato tácito, concedem ao particular uma ação contra as omissões indevidas da administração, através da qual esta será condenada a praticar os atos legalmente devidos. Assim sucede no direito inglês com o writ of mandamus, e no direito alemão com o verpflichtungsklage (ação obrigatória)[9].

Mais importante ainda é referir a Reforma de 2015, que trouxe também importantes alterações: o deferimento tácito manteve-se, mas apenas nos casos previstos na lei, ao abrigo do disposto no art. 130.º; para todos os restantes casos, sem prejuízo da exceção estatuída no art. 13.º/2, é regra é a de que, havendo violação do prazo legalmente previsto no art. 128.º, a administração incorre em incumprimento do dever de decisão, em conformidade com o disposto no art. 129.º. Este último artigo, na sua parte final, remete exatamente para o que explicamos acima: não para uma ficção de indeferimento, mas antes para um mecanismo que permite ao particular exigir da administração a conduta que lhe é devida: “o que está em presença não é um hipotético acto da Administração, mas, justamente, o seu oposto, ou seja, a concreta omissão ilegal de acção (decisão) desta”[10].

3.       O problema da natureza do ato tácito

A questão da natureza do ato tácito é de natureza controvertida, tendo levantado múltiplos debates doutrinários. As posições a apontar nesta sede são tradicionalmente as que se seguem:

A primeira entende que o ato tácito é um verdadeiro ato administrativo, portanto, uma conduta voluntária da administração. Propugnada por MARCELLO CAETANO, sustenta o seu entendimento argumentando que existe uma efetiva manifestação de vontade do órgão competente da administração, já que estes têm conhecimento da lei e terão consciência das consequências legais que venham a implicar o seu silêncio. Assim, nada dizendo, deve-se entender que o órgão quis que aquele silêncio fosse interpretado no sentido que a lei lhe atribuir[11].

Uma outra corrente, esta representada entre nós por ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e RUI MACHETE, entende que não haverá qualquer conduta voluntária no ato tácito e que portanto, não pode este ser concebido como ato administrativo, mas sim como mero pressuposto do recurso administrativo[12].

Entendem estes autores que embora possa efetivamente suceder, em alguns casos, o que afirma MARCELLO CAETANO, nem sempre é assim. O decurso do prazo e a consequente produção do ato tácito pode dever-se aos mais variados motivos (a incapacidade acidental, o mero descuido, o excesso de trabalho, o desinteresse, o desconhecimento do direito aplicável...) pelo que não se pode simplesmente presumir que, na hipótese de indeferimento, este deu-se por vontade da administração. Em todos os casos enumerados, a existência de ato tácito dar-se-ia sem a vontade da administração, pelo que não poderia estar em causa um ato administrativo (que pressupõe conduta voluntária da administração).

Cabe mencionar ainda a tese de FREITAS DO AMARAL, que embora concedendo que não há conduta voluntária nos atos tácitos, dando razão aos autores acima invocados, não subscreve a tese de que se tratariam, os atos tácitos, de mero pressuposto da via contenciosa.

Prossegue argumentando que, no fundo, o ato tácito acaba por receber igual tratamento na lei que os atos administrativos – pode ser interpretado, suspenso, revogado, confirmado, etc.. Assim, a natureza dos atos tácitos reside na ideia de ficção legal de ato administrativo: não é um ato administrativo per se, mas em termos de eficácia jurídica tudo se passa como se fosse[13].

Em posição minoritária encontraríamos ALEXANDRE ALBUQUERQUE, que entende os atos tácitos enquanto meras expetativas jurídicas.

Quanto ao Supremo Tribunal Adminsitrativo, tendo em conta a jurisprudência dominante (reafirmada no acórdão 28/10/1995), estes atos seriam nada mais que uma mera ficção “criada pelo legislador com exclusivas finalidades adjectivas: ele não é um verdadeiro acto administrativo (...) mas tão-só um expediente criado com a única finalidade de permitir aos particulares impugnar comportamentos omissivos da Administração”[14].

4.       Nota conclusiva

Por via de conclusão, haverá a salientar que a relevância do silêncio da administração passa por um longo processo.

Se numa primeira fase o silêncio teve em Portugal, e noutros países, relevância verdadeiramente significativa, o que se tem verificado nos dias atuais é uma tendencial irrelevância. Uma vez violado o prazo a que está vinculada a administração, esta encontra-se em incumprimento do dever de decisão, podendo o particular exigir o ato que esta lhe deve por via judicial – e é com tal paradigma de simplicidade que a lei atual responde à problemática da “política de braços cruzados da administração”[15]  tornando-se secundárias as discussões sobre o valor positivo ou negativo do silêncio.

 

Realizado por:

Tânia Tavares, n.º 63337.

 



[1] PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, reimpr., 2016, p. 396.

[2] MAURICE HAURIOU, Précis de Droit Administratif et de Droit Public, 1914, p. 142.

[3] PAULO OTERO, ibidem.

[4] ALEXANDRE ALBUQUERQUE, Indeferimento Tácito, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol.V, 1993, pp. 212-213.

[5] VASCO PEREIRA DA SILVA, Transcrições de aula teórica (Ano Letivo 2020-2021).

[6] FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 2ª Edição, 1994, p. 364.

[7] JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª Edição, 2003, p. 366.

[8] CAUPERS, ibid., p. 367; Contudo, concede que o deferimento tácito pode originar perversões, como no caso do orgão administrativo que pretende favorecer um interessado “em condições de legalidade duvidosa” sem querer, de um modo explícito, assumir esse risco, deixando simplesmente passar o tempo, conscinete de que obtém o mesmo resultado (367-368).

[9] FREITAS DO AMARAL, ibid., p. 366.

[10] ISABEL MONTEIRO, Incidências do Código de Processo nos Tribunais Administrativos no Código do Procedimento Administrativo, disponível em: https://www.igf.gov.pt/inftecnica/75_anos_IGF/isabelmonteiro/isabelmonteiro_cap032.htm

[11] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 1980, pp. 476-477.

[12] ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, Erro e ilegalidade no ato administrativo, p. 85 e ss.; e RUI MACHETE, O ato confirmativo de ato tácito de indeferimento e as garantias de defesa dos administrados, in Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, p. 189 e ss..

[13] FREITAS DO AMARAL, ibid., pp. 370-371.

[15] MARQUES GUEDES, O processo burocrático, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1969, p. 60.

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